segunda-feira, 4 de abril de 2011

Shameless e as Tradições Familiares

O texto pode conter spoilers!

Entre janeiro e março o canal Showtime exibiu a primeira temporada de sua nova série, “Shameless”, adaptação de uma produção inglesa que está em sua oitava temporada. No Brasil, as duas são exibidas pelo canal a cabo I.Sat.

A versão americana traz o ator William H. Macy interpretando Frank Gallagher, um alcoólatra sem moral ou consciência, pais de seis filhos, abandonado pela esposa. Enquanto Frank cuida de sua vida e de seus interesses, Fiona (Emmy Rossum), a filha mais velha, assume o papel de mãe para seus irmãos mais novos.

Entre eles temos Lip, diminutivo de Phillip (Jeremy Allen White), um sujeito muito inteligente e esperto, que cobra para fazer trabalhos escolares e testes (uma espécie de vestibular), para que outros possam entrar em instituições de ensino; Ian (Cameron Monaghan), um rapaz gay que trabalha em uma loja de conveniências, onde mantém um caso com o patrão; Debbie (Emma Kenney), uma jovem carente, com aptidões culinárias, que idolatra o pai e sonha com uma vida normal em família; Carl (Ethan Cutkosky), um pré-delinquente que adora explodir coisas e bater nos colegas de escola; e Liam (Blake e Brennan Johnson), que todos pensam não ser filho de Frank, já que ele é negro.

Vivendo com pouco dinheiro, sem a presença da mãe e do pai, que prefere morar na casa de Sheila (Joan Cusack), mãe de Karen (Laura Wiggins), namorada de Lip, a família Gallagher vive um dia de cada vez, solucionando os problemas que vão surgindo.

Se o público se guiar pelo enredo, irá tirar uma conclusão errada sobre sua proposta. Apresentada como uma série sobre uma família disfuncional, “Shameless” é mais uma das produções atuais que valoriza o comportamento da família tradicional.

Segundo definições, este comportamento estabelece a família como uma geradora de afeto, segurança, aceitação pessoal, sentimento de utilidade, estabilidade, socialização e definição do que é certo e errado. Os Gallaghers, à sua maneira, vivem sob essas regras.

Defendendo uma ideia que vem desde a colonização americana, a qual estabelece a força da união para enfrentar os desafios do ambiente, os Gallaghers dão continuidade à fórmula estabelecida pela televisão nos anos de 1950: a união familiar frente aos problemas. Ninguém tem, de fato, a índole ruim, à sua maneira, todos se respeitam e se aceitam pelo que são. Assim, vivem em harmonia sob o mesmo teto, à margem da sociedade, fazendo uso da burocracia e dos defeitos de terceiros para conseguir sobreviver.



Em cada um dos 12 episódios produzidos para a primeira temporada, vemos a família Gallagher enfrentando um novo desafio, criado para mostrar ao público a importância da união.

Mesmo o pai, que se declara independente e desinteressado pelo que acontece aos seus filhos, está, de alguma forma, sempre presente. Ele é o responsável por gerar diversos problemas pelos quais os filhos passam, mas nem por isso deixa de ser parte da família. Quando Frank precisa de ajuda, os filhos se unem para garantir a segurança do pai.

Esse espírito de união se estende àqueles que, de alguma forma, entram em contato com os Gallaghers. Funcionários públicos que prestam serviços à comunidade acobertam os deslizes dos membros da família; os vizinhos, Verônica (Shanola Hampton) e Kevin (Steve Howey) são uma extensão desse grupo; Steve (Justin Chatwin), o namorado de Fiona, prefere passar mais tempo com a família dela que com a própria; e até Mônica, a mãe desse clã, que fugiu abandonando os filhos, quando retorna trazendo problemas, acaba se rendendo ‘à força da união’.

Nada do que foi proposto teve como objetivo separá-los, ao contrário, a função era mostrar o quanto eles são unidos. Desta forma, os problemas enfrentados não tiveram, de fato, consequências graves. Nem mesmo o último episódio da temporada, no qual vemos Frank cometer um dos maiores crimes que poderia existir na relação entre pai e filho: ele tem relações sexuais com a namorada de Lip, uma jovem menor de idade, perturbada, carente e que passa por um momento difícil na relação com seu próprio pai.

Mesmo esse momento foi construído com o objetivo de agregar e não de destruir. A situação revela uma faceta da personalidade de Frank que os filhos, e o público, não acreditavam que ele poderia ter: consciência e limites morais. Na cena, o personagem não está no domínio da situação, é a jovem que toma a decisão e mantém o controle do ato; ela produz um vídeo para ser mostrado ao pai, o que serve de prova que Frank não buscou a situação, eliminando qualquer dúvida que pudesse surgir; posteriormente, Frank vive uma crise de consciência, que o leva a impor limites ao comportamento da menina e a pedir desculpas ao filho.

A cena que vem a seguir faz um perfeito retrato da proposta da série: posturas anticonvencionais que mascaram um comportamento tradicional. Ao pedir desculpas ao filho, Frank e Lip protagonizam uma cena de balcão ‘à la Romeu e Julieta’. Mas, ao invés das declarações apaixonadas do jovem casal modelo, temos um monólogo (já que Lip não fala), no qual Frank, aos ‘trancos e barrancos’, mostra-se arrependido. Em resposta, Lip urina no pai, sendo que este aceita o fato como justificável. A cena termina com os dois, secretamente, sorrindo um para o outro. Mais um momento criado para revelar a força que une pai e filho.

Ao contrário de “Brothers & Sisters”, na qual temos uma família que, sob uma aparente união, se deixa levar por rancores, em “Shameless”, temos pessoas com todos os motivos do mundo para se apegarem aos rancores e às tristezas, mas que, por aceitarem cada membro como ele é, traçam o caminho oposto.

Esta construção funcionou para a primeira temporada, que tinha o objetivo de estabelecer personagens e situações, o que não significa necessariamente que conseguirá se manter nas próximas. Não conheço a série da qual se originou, mas “Shameless” terá de sofrer mudanças na construção de situações e desenvolvimento de personagens, caso contrário, ficará presa à armadilha do uso de fórmula.



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